Nenhuma ideologia pode superar as tensões que definem a existência humana, nem lhe é superior em valor.
A fama é um fenômeno social: ad gloriam non est satis unius opinio (como pedante e sabiamente observou Sêneca), “para a fama não basta a opinião de um”, embora baste para a amizade e o amor. E nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem uma classificação, sem uma disposição de coisas e homens em classes e tipos prescritos. Essa classificação necessária é a base de toda discriminação social, e a discriminação, não obstante a opinião contrária atual, é um elemento constituinte do âmbito social, tanto quanto a igualdade é um elemento constituinte do âmbito político. A questão é que, na sociedade, cada um deve responder à pergunta sobre o que é – diferente da pergunta sobre quem é –, qual seu papel e sua função, e a resposta, evidentemente, não pode ser: sou único, não devido à arrogância aí implícita, mas porque a resposta seria sem sentido.
– Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios
Arendt escreveu este parágrafo para falar de Walter Benjamin. Eu o cito para falar de Fernando Holiday. Não que possa haver alguma comparação entre ambos (não consigo imaginar nenhuma), mas há, na repercussão causada pelas posições políticas do segundo, agora que foi eleito vereador em São Paulo, um desdobramento desta tensão entre ordem social e individualidade de que fala o trecho.
Há inúmeros exemplos na literatura, tanto acadêmica quanto ficcional, do enquadramento de comportamentos desviantes na ordem estabelecida. Quando um membro de determinado grupo ou ideologia começa a pensar e se comportar de modo francamente oposto àquele que deveria, as engrenagens começam seu processo de segregação e eliminação.
A esquerda está cheia de análises, debates, filmes, poemas, panfletos e fanzines sobre o assunto, em geral criticando este estado de coisas. Por isso parece tão estranho que Fernando Holiday, o primeiro vereador assumidamente gay de São Paulo, esteja sendo “enquadrado” por um artigo na revista Cult, em nome do “Movimento LGBT”.
O curto-circuito ideológico causado pelas posições assumidas por ele – e pelo partido que escolheu, o DEM – ilustra muito bem o fato de que uma ideologia que organiza e dá sentido ao mundo parece ser, para alguns, muito mais importante do que a singularidade do indivíduo. Exatamente no sentido indicado pela citação de Arendt, não há absolutamente nada de libertador num conjunto de ideias cuja função é legitimar, pela articulação de uma visão de mundo específica, a ação de seus membros.
Leiam este trecho do artigo:
É hora de assumirmos a difícil constatação de que, em si, não há nada de emancipatório ou transformador no fato de um gay assumir um mandato parlamentar. Isso não reflete, necessariamente, uma conquista da luta por representatividade e diversidade. Importa analisar, antes e em primeiro lugar, o quanto esse parlamentar se alinhará às reivindicações históricas construídas pelo movimento em sua pluralidade, ainda que ele discorde delas. O fato de pertencer à comunidade imaginária LGBT não é atestado contribuição para a luta por diversidade.
Em resumo: o movimento LGBT não ganha nada com um gay a menos que ele seja do movimento LGBT. Para que a unidade ideológica de qualquer movimento possa funcionar, é preciso estigmatizar o comportamento destoante em nome da unidade. Contudo, parece-me óbvio que há contradições em qualquer classe, etnia, gênero, campo ou categoria sociológica com a qual se queira trabalhar, mas é incontornável, pelo menos para mim, que o fato de Holiday ser gay é mais importante do que pertencer ou não ao “movimento” LGBT, e não o contrário.
Dito de outro modo, nenhuma ideologia pode superar as tensões que definem a existência humana, nem lhe é superior em valor. Trata-se de inverter a lógica dos sistemas de categorias exatamente para lhes determinar o limite moral e político. E o limite sempre será a singularidade do indivíduo. Mas é aí que as coisas ficam, de fato, perigosas. Sem a âncora moral da singularidade (da categoria de “pessoa”, diria Henrique Lima Vaz), rapidamente os “movimentos” organizados em nome de uma etnia, classe, ou o que o valha, começam a sacrificar, em nome de si mesmos, aqueles que pretendem salvar.
Na verdade, as contradições aparentes e reais de Holiday são mais importantes e necessárias do que qualquer “movimento” que as pretenda canalizar e articular como ação ou crítica política, são o seu limite. É óbvio que a militância tem seu papel, mas não tem o direito de enquadrar ninguém ou acusar, cabotinamente, qualquer um de estar a serviço das “estruturas opressivas que lhe atravessam” por não agir nem concordar com sua visão de mundo. Não é Holiday quem deve, supostamente, “resolver” sua contradição, somos nós que devemos entender que a ideologia não é capaz de explicar o mundo. Nem jamais será.
Daniel Christino
Doutor em Comunicação e professor da Universidade Federal de Goiás.